É comum descrever o ódio como uma manifestação natural do ser humano. Tanto que, quando ocorre, falamos que “não pudemos nos controlar”, ou que houve uma “explosão de raiva”. A verdade é que o ódio não é mais ou menos natural do que a compaixão e o respeito. O problema é que temos deixado o ódio ganhar espaço e contaminar pessoas, como um vírus. E hoje estamos diante de uma pandemia.
Há dois componentes fundamentais na prática do ódio: a certeza de quem odeia e a falta de precisão do seu objeto. Para odiar, é preciso, antes de tudo, ser ignorante em relação a quem se odeia. Por isso, as vítimas do ódio são sempre coletivas: negros, imigrantes, pobres, judeus, homossexuais, etc. O ódio não provém do ressentimento, como se esses grupos, de alguma forma, compartilhassem da formação desse sentimento e, por isso, fossem uma espécie de cúmplices de quem odeia. Não. O ódio vem de uma visão de mundo na qual, quem odeia, chegou ao limite da sua tolerância na aceitação do diferente e, por isso, agora acha legítimo se manifestar. Que um negro exista e seja livre e trabalhe e até mesmo se destaque, tudo bem. Mas querer mandar? O mesmo com uma mulher, com um estrangeiro, com um pobre, com uma pessoa gorda. Quem odeia considera-se excessivamente permissivo e quer dar a si mesmo um basta nesse exagero. Ele está certo disso, não tem dúvidas. Por isso, acha tão legítimo manifestar-se, como uma expressão da sua liberdade, direito sagrado que enxerga como fundamental para o funcionamento de uma sociedade saudável. O problema não é o ódio que ele sente, mas as pessoas diferentes que querem ultrapassar os limites do tolerável, dentro da visão de mundo que ele construiu para si. Isso não quer dizer que ele seja um preconceituoso. Não é comum ouvir a defesa dos que odeiam, dizendo que “não fazem nenhuma oposição aos homossexuais”, só não acham certo que eles fiquem se beijando em público? Aí está: o ódio é uma forma firme, mas generosa, de querer apenas fazer com que o mundo gire em torno de seu próprio eixo, sem sustos e sem surpresas.
E como combater o ódio? Como escapar da armadilha dessa fluidez da pessoa que odeia mas, “de resto”, é gente boa, gentil e muito camarada com seus amigos e familiares? É preciso compreender a origem e a razão da expressão do ódio, que é a nostalgia por um mundo perfeito que nunca existiu. O ódio alimenta-se por uma visão antimoderna, de um tempo/espaço no qual tudo tinha o seu lugar e o seu papel. A eclosão das diferenças, a velocidade das mudanças, a emergência do novo, a mistura de tarefas e de papéis sociais, criam uma confusão na cabeça de muitas pessoas que, para combater essa vertigem, refugiam-se na ideia de que é possível recuperar esse tempo perdido eliminando seus fatores dissonantes. E a esses fatores, eles costumam chamar de “os outros” que são o objeto do seu ódio.
Não adianta odiar quem odeia com mais ódio. Isso é entrar para o time deles – e não combatê-los. É preciso, ao contrário, reforçar o mundo de mudanças no qual estamos inseridos, destacando as diferenças, estimulando-as, praticando-as. Muitos já compreenderam a poderosa arma contra o ódio, que é o reforço da compaixão e o elogio da diversidade. Por isso, a sereia Ariel pode ser ruiva e pode ser negra; por isso, James Bond pode ser homem e pode ser mulher; por isso, Velma, a detetive do Scooby-Doo, pode ser hetero ou homo; por isso, o homem aranha pode ser muitos, pois somos um multiverso, aqui e agora.
Não precisamos converter os que odeiam, mas desqualificar as razões que alegam para odiar. O mundo pode e deve ser um lugar plural e fluido. Quanto mais o mundo for assim, permitindo a todos o exercício de suas vidas singulares, menores serão os espaços de disseminação do ódio, mais isolados ficarão os que odeiam. Como uma vacina, que não pretende eliminar o vírus, mas torná-lo inofensivo aos que querem viver e experimentar a beleza da incrível variedade da existência.
*Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor de Humanidades no Curso Positivo.
@profdanielmedeiros