A transferência da capital foi um divisor de águas para a interiorização do desenvolvimento no país, especialmente do Centro-Oeste
Essa avaliação é consenso entre os que se dedicam a estudar Brasília. Nas últimas décadas, a região cresceu a taxas superiores à média nacional, impulsionada pela expansão da fronteira agrícola e pela renda proporcionada pelo agronegócio.
O Centro-Oeste, que contribuía com 3,8% para a formação da riqueza do país, em 1970, escalou para a faixa dos 10% na década passada, segundo estudo do economista Júlio Miragaya, publicado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
As vastas extensões de cerrados, antes com algumas áreas localizadas de plantio de arroz e pecuária, foram ocupadas principalmente pelo cultivo da soja. O crescimento da área plantada com a leguminosa, que era de 1,5% no período 1960 a 1970, dez anos iniciais de Brasília, saltou para nada menos que 79,7% nas décadas de 1980 a 2010.
Esse dinamismo econômico regional, no entanto, não contribuiu até hoje para resolver uma das maiores dores de cabeça do Distrito Federal: tirar do subdesenvolvimento os municípios goianos que gravitam no seu entorno. Eles se tornaram um cinturão de pobreza, desemprego, violência e serviços públicos precários. E até agora não se encontrou uma forma de beneficiá-los com políticas públicas que os integrem a Brasília.
— Trata-se de um imbróglio institucional. Parecem filhos que ninguém quer tomar conta — diz o professor da área de planejamento urbano da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (UnB), Benny Schvarsberg, um dos principais estudiosos dos impactos regionais da capital.
São anos de pesquisas, debates, negociações políticas, divergências e projetos para dar sustentação legal e integrar a região. Na prática, quase nada foi para a frente. O consórcio para a área de resíduos sólidos e águas pluviais, que começou a funcionar em 2015, encontra-se completamente parado. A meta de extinguir os lixões a céu aberto nessas cidades do Entorno, um dos objetivos do consórcio, não saiu do papel.
Lixão em Formosa, Goiás (foto: Reprodução/Ministério Público-GO)
Era o único arranjo institucional existente, mesmo que cambaleante. Hoje há políticas públicas para atender os três milhões de habitantes do DF, estimados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no ano passado. Mas elas não alcançam a expressiva população dos 12 municípios circunvizinhos, com 1,1 milhão de residentes, conforme dados de 2018 da Companhia de Desenvolvimento do DF (Codeplan).
Pobreza
Com esse conjunto de habitantes, o DF e os municípios do Entorno tornaram-se a terceira área metropolitana do país, atrás somente das de São Paulo e Rio de Janeiro. A explosão populacional em somente seis décadas, resultado de fluxos migratórios intensos, especialmente do Nordeste, aumentou os problemas da mais jovem capital do país. Sua periferia inchou com aqueles que não conseguiram residir em Brasília, formando um aglomerado de municípios pobres e dependentes, todos em Goiás. E as estatísticas comprovam isso.
Enquanto a renda média de cada morador do DF era de R$ 2.461 há dois anos, esse mesmo indicador (per capita) era de minguados R$ 661 para os habitantes desses 12 municípios goianos. Ou seja, a renda média dos moradores dessa periferia correspondia a apenas 27% dos residentes no DF, mesmo incluindo as cidades-satélites mais pobres.
A última Pesquisa Metropolitana por Amostragem de Domicílios (PMAD), realizada em 2018 pela Codeplan, destacou que a renda média desses domicílios goianos está abaixo de três salários mínimos. Isso significa que sua população é de baixa renda. Outros indicadores confirmam as enormes disparidades. Um deles é o nível de escolaridade. Nessa periferia goiana, apenas 5,67% dos seus moradores declararam ter conseguido concluir o curso superior, enquanto no DF 33,9% afirmaram ter curso superior completo.
O analfabetismo também é maior no Entorno. A média é de 3,76%. Enquanto no DF, que também possui moradores muito carentes em algumas de suas 33 regiões administrativas, 2,9% dos consultados se declararam analfabetos. O economista Umberto Menezes, da gerência de estudos urbanos da Codeplan, explica que a diferença não é tão acentuada nesse indicador porque, bem ou mal, é uma população urbana com acesso a escolas.
Dependência
Além de renda e escolaridade baixas, essa periferia depende de postos de trabalho do DF. Quase 60% dos moradores de Águas Lindas de Goiás, que já foi considerado o município mais violento do país, trabalham no DF. Novo Gama vem em segundo lugar (56,6%), seguido por Valparaíso (55%), Cidade Ocidental (52,30%), Santo Antônio do Descoberto (50,7%) e Planaltina de Goiás (49,70%).
A maior parte dos empregos nesses municípios da Periferia Metropolitana de Brasília (PMB), segundo Menezes, vem do comércio dessas localidades. E há diferenças entre esses municípios. Valparaíso, por exemplo, apresenta renda acima das outras cidades da PMB, porque lá residem muitos funcionários públicos que trabalham em Brasília e conseguem salários mais altos.
O professor aposentado da Universidade de Brasília (UnB) Aldo Paviani, reconhecido como um dos maiores estudiosos da capital e de sua periferia, lembra que essas cidades da PMB não se estruturaram para oferecer moradia e emprego ao mesmo tempo. E os empregos nesses locais são geralmente com salários baixos.
Aldo Paviani em audiência pública no Senado (foto: Geraldo Magela/Agência Senado)
Paviani, ex-diretor da Codeplan e ainda um colaborador da UnB, diz que esse quadro só será alterado, diminuindo a dependência do DF, com políticas públicas que integrem a região e criem empregos nesses municípios goianos. Um exemplo seria estimular postos de trabalho na área de serviços que não precisam estar localizados em Brasília.
Para o professor, se fosse constituída uma região metropolitana, seria possível investir, adotar políticas para fixar essa população nesses municípios da PMB e reduzir a pressão sobre os serviços públicos do DF, como na área de saúde.
Divergências
A questão crucial para integrar essa periferia a Brasília é ter um arranjo institucional que funcione. Para se ter ideia do tamanho do imbróglio, não há convergência sequer sobre qual o real tamanho da área de influência do DF. Em 2014, uma nota técnica da Codeplan, da qual Paviani foi um dos autores, introduziu o conceito de Área Metropolitana de Brasília (AMB), composta pelo DF e 12 municípios goianos periféricos (ver mapa). É esse documento que serve de base para pesquisas dos indicadores sócio-econômicos da região.
Antes da AMB, a Lei Complementar 94, de 1998, criou a Região Integrada de Desenvolvimento do Distrito Federal e Entorno (Ride). A medida estipulou que a Ride compreenderia 21 municípios, incluindo Buritis e Unaí, que pertencem a Minas Gerais. 20 anos mais tarde, a abrangência dessa Ride foi ampliada (Lei Complementar 163, de 2018) para nada menos que 33 municípios, alguns distantes, como Cavalcante e Alto Paraíso, na região goiana da Chapada dos Veadeiros, conhecida por suas belezas naturais.
O resultado é que a Ride do DF e Entorno ficou no papel. Segundo Miragaya, ex-presidente da Codeplan e co-autor da nota técnica que conceituou a AMB, as prefeituras desses municípios não reconhecem a existência da Ride. O documento acabou não ajudando a articular políticas públicas que beneficiariam os municípios da região.
Ride
A lei federal que cria o Ride prevê que o Executivo possa criar um conselho administrativo para coordenar as atividades da região integrada e instituir o Programa Especial de Desenvolvimento do Entorno do Distrito Federal. Sob esse amparo legal, convênios poderiam ser firmados entre a União, o DF, os estados de Goiás e Minas Gerais e todos os municípios incluídos na Ride.
O consultor do Senado para a área de desenvolvimento urbano, Victor Carvalho Pinto, concorda que o gigantismo da Ride do DF e Entorno inviabilizou seu funcionamento. Sua criação está prevista na Constituição de 1988 como um instrumento que possibilita a União atuar em uma microrregião do país. No Brasil, segundo ele, existem três Rides: DF e Entorno, Grande Teresina, no Piauí, (Lei Complementar nº 112, de 2001) e Polo Petrolina (PE)/ Juazeiro (BA) (Lei Complementar nº 113, de 2001).
Com base na Ride de 1998, foi possível construir a única ponte entre o DF e 19 municípios goianos do Entorno: o Consórcio Público de Manejo dos Resíduos Sólidos e das Águas Pluviais da Região Integrada do DF e Goiás (Corsap). No entanto, segundo a assessora do consórcio, Yngrid Gebrim, o Corsap está desativado desde fevereiro do ano passado, por falta de recursos, sucessão de governadores estaduais e desinteresse das prefeituras.
Prefeitura de Pirenópolis (GO) realiza oficina de coletiva seletiva com estudantes da rede pública (foto: Divulgação/Prefeitura de Pirenópolis-GO)
As despesas do consórcio, como locomoção e pagamento da própria equipe, são bancadas com cotas rateadas entre os municípios participantes e os dois governos estaduais, o do DF e o de Goiás. O consórcio ainda pode receber repasses federais para atender projetos, por meio de convênios.
Mas não há recursos. A assessora conta que foram aprovadas duas emendas parlamentares para o Corsap no Orçamento federal de 2016. Seriam aplicadas em projetos de manejo de resíduos sólidos, porém não foram executadas. A de maior valor, R$ 1,356 milhão, está autorizada na Caixa Econômica Federal. Mas os recursos não foram aplicados pela ausência de quadro técnico do Corsap para organizar a licitação, segundo Yngrid. A outra emenda, de R$ 776 mil, ficou travada na Caixa. Yngrid diz que até hoje não há resposta sobre o que ocorreu com o processo.
A atuação do consórcio acabou restrita a visitas a todos os municípios participantes, dos quais apenas quatro (Novo Gama, Padre Bernardo, Água Fria de Goiás e Pirenópolis) conseguiram concluir seus planos para o manejo de resíduos sólidos, com a aprovação de leis municipais. Porém, o único projeto que saiu efetivamente do papel foi o intitulado Quintal Orgânico.
O projeto estimula o uso de resíduos compostados em hortas comunitárias, por meio de oficinas, palestras e assessoria. Mesmo assim, somente dois municípios (Água Fria e Mimoso) conseguiram implantar o projeto, segundo a assessora do Corsap.
Região Metropolitana
Outra iniciativa que não decolou foi a criação de uma região metropolitana. Ela teria autorização federal e sustentaria políticas públicas para o DF e seus municípios vizinhos com base em leis estaduais e uma lei distrital. Uma grande diferença em relação à Ride, segundo o consultor do Senado, é ser um instrumento de caráter impositivo. Definida uma política de saneamento para a região metropolitana, por exemplo, os municípios não poderiam se recusar a participar e optar por diretrizes próprias.
Em 2014, o então senador Aloysio Nunes apresentou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC 13/2014), que previa a possibilidade de instituir regiões metropolitanas interestaduais ou com o DF por meio de lei complementar federal. A PEC foi arquivada no final de 2018, exatamente o que ocorreu com a tentativa anterior (PEC 27/ 2008) para criar essas regiões metropolitanas.
Nova tentativa foi feita na época da votação do Estatuto da Metrópole. O texto aprovado no Congresso previa a possibilidade de o DF compor uma região metropolitana com seu Entorno. No entanto, esse dispositivo do estatuto (Lei 13.089, de 2015) foi vetado pela então presidente Dilma Rousseff. O pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Marco Aurélio Costa, que participou das discussões no Congresso, lembra que um dos argumentos para o veto presidencial foi a existência da Ride do DF e Entorno.
A última investida foi a Medida Provisória (MP) 862/2018, ainda na administração de Michel Temer. Ela alterava o Estatuto da Metrópole para criar a região metropolitana do DF e os municípios do Entorno. No ano seguinte, a MP foi discutida no Congresso e seu texto original, segundo o consultor do Senado, teria que ser modificado para se adequar à Constituição de 1988.
Queda de braço
Na fase das emendas, a tramitação da MP 862 emperrou pela disputa por recursos do Fundo Constitucional do DF (FCDF). O fudo paga a folha de salários de servidores da segurança pública e garante repasses para serviços nas áreas de saúde e de educação de Brasília. O seu valor é considerável.
Esse ano, o montante autorizado pela lei orçamentária federal foi de R$ 15,7 bilhões, ou seja, quase 5% do total de recursos que devem ser transferidos pela União para estados, municípios e DF. Segundo dados do Siga Brasil, sistema do Senado que facilita a leitura e o acesso ao Orçamento federal, já foram pagos R$ 5,7 bilhões até maio deste ano.
A disputa por esses recursos do fundo desencadeou uma verdadeira queda de braço entre os novos governadores de Goiás e do DF e os parlamentares dos dois estados. O professor Schvarsberg, defensor da proposta, lembra que os goianos queriam "abocanhar" parte de recursos do FCDF, o que foi barrado pelo governador do DF.
Sem acordo para a sua aprovação, a MP perdeu sua validade e, com isso, essa proposta de integração regional voltou à estaca zero. Não há até agora nenhum projeto que retome essa iniciativa, segundo o consultor do Senado.
Sudeco
Para Schvarsberg, a criação de uma região metropolitana para o DF e os municípios da PMB é o arranjo institucional mais efetivo para melhorar os serviços públicos e tentar romper o cinturão de pobreza dessa periferia. Ela permitiria instituir um fundo para direcionar a aplicação de recursos, a exemplo da região metropolitana de Belo Horizonte, a que melhor funciona na avaliação do professor da UnB. Teria um conselho para articular e coordenar um plano integrado para a região nas áreas de transporte, saneamento básico, educação, saúde e segurança pública.
Diante desse imbróglio institucional, como ele mesmo classifica, o professor de planejamento urbano da UnB, sugere como alternativa fortalecer a Superintendência de Desenvolvimento do Centro-Oeste (Sudeco) para que o órgão ajude o DF e os municípios pobres de sua periferia.
Essa proposta chegou a ser cogitada pelo atual governo. Técnicos da Casa Civil, da Sudeco e dos governos de Goiás e do DF se reuniram para discutir alternativas nas áreas de segurança, saúde, mobilidade urbana, emprego e renda, inclusive com a possibilidade de aplicação de recursos do Fundo Constitucional de Financiamento do Centro-Oeste (FCO). No entanto, a ideia não avançou e foi colocada na geladeira com a pandemia do coronavírus.
Leila defende entendimento
De acordo com a senadora Leila Barros (PSB-DF), há necessidade de que o Distrito Federal, Goiás e a União se unam de verdade com vistas a encontrar soluções para os problemas e desenvolver saídas econômicas e sociais para o entorno. "De forma isolada, assuntos como saúde, meio ambiente e economia naquela região não serão resolvidos por ninguém", adverte a parlamentar.
No entender da senadora, uma alternativa seria a criação de mecanismos como consórcios para gerir hospitais e redes de saúde, cuidar de resíduos sólidos e implementar projetos econômicos. "Essa parceria é uma necessidade e deveria envolver o DF, Goiás, municípios da região e a União. Devemos sair da posição de rivalidade, que só tem gerado abandono para aquela região. O caminho certo é passarmos a agir em conjunto, com uma pauta real", explica
Ela apresentou uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que cria os Fundos das Regiões Metropolitanas. A PEC permite que estados e o DF, por meio de lei complementar, delimitem microrregiões no entorno de cidades com mais de um milhão de habitantes. O objetivo é integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum. Todos os valores arrecadados nesses locais com o IPVA (estadual) e o IBTI (municipal) seriam revertidos para um fundo constitucional a ser criado para cada região.
Fonte: Agência Senado.